“Descobriram que sua mesa de trabalho estava toda arranhada por baixo, porque, com seu temperamento forte, preferia arranhar a mesa a responder sem amor e sem mansidão para as pessoas.” Esse era o temperamento de São Francisco de Sales, um amigo do céu que liturgicamente comemoramos hoje, 24 de janeiro.
Segue um trecho do livro intitulado “Filoteia” (alma que Ama a Deus), uma obra de São Francisco de Sales que como uma introdução a vida devota, procura ajudar Filoteia a percorrer com resolução, empenho, confiança e ardor uma vida cristã.
A mansidão para conosco
Um modo de fazer um bom uso desta virtude é aplicá-la a nós mesmos não nos irritando contra nós e nossas imperfeições; o motivo, pois, que nos leva a sentir um verdadeiro arrependimento de nossas faltas não exige que tenhamos uma dor repassada de aborrecimento e indignação. É quanto a esse ponto que erram muitos continuamente, agastando-se por estarem agastados e amofinando-se por estarem amofinados, porque assim conservam aceso no coração o fogo da cólera e, bem longe de abrandar deste modo a paixão, estão sempre prestes a exasperar-se à primeira ocasião. Além de que esta ira, pesar e aborrecimento contra si mesmo encaminham o orgulho, procedem no amor-próprio que se perturba e inquieta por nos ver tão imperfeitos. O arrependimento de nossas faltas deve ter duas qualidades: a tranquilidade e a firmeza.
Não é verdade que a sentença que um juiz pronuncia contra um criminoso, com calma, é mais conforme à justiça do que aquelas que são influídas pela paixão e por um espírito irrequieto, determinando o castigo não tanto pela qualidade do crime como por sua disposição? Digo também que mais eficazmente nos punimos de nossas faltas por uma dor calma e constante do que por um arrependimento passageiro e cheio de amofinações e indignação, porque nesta excitação nos julgamos segundo a nossa inclinação e não conforme a natureza do erro cometido. Por exemplo: quem tem grande afeto à castidade sentirá amargamente qualquer golpe desferido contra esta virtude, rindo-se talvez de uma grave detração em que tiver incorrido; ao contrário, quem odeia a detração há de se afligir excessivamente de uma leve palavra contra a caridade, fazendo talvez pouco caso de uma falta considerável contra a castidade. De onde vem isso senão de que se julga a consciência não segundo a razão, mas segundo a paixão?
Crê-me Filoteia, uma admoestação de um pai a seu filho, feita com uma doçura toda paternal há de corrigi-lo mais facilmente que um castigo severo infligido num estado de irritação. De modo semelhante, se nosso coração cometer uma falta e nós o chamamos à ordem, branda e tranquilamente, com mais compaixão de sua fraqueza do que ira contra a sua falta, exortando-o com suavidade a proceder melhor, este modo de agir tocará e encherá mais de dor do que as repreensões ásperas que a indignação apaixonada lhe poderia fazer.
Quanto a mim, se me propusesse evitar todo pecado de vaidade e caísse num, bem considerável, não havia de repreender o meu coração desse modo: Tu és verdadeiramente miserável e abominável, porque te deixaste seduzir pela vaidade depois de tantas resoluções! Que vergonha! Não levantes mais os olhos ao céu, cego, imprudente e infiel a Deus! – quisera corrigi-lo com modos compassivos: Pois bem, meu pobre coração, eis-nos de novo caídos na cilada que tínhamos resolvido evitar! Ah! Levantemo-nos de novo e livremo-nos dela para sempre; imploremos a misericórdia de Deus; esperemos que Ele nos sustenha para o futuro e reentremos nos caminhos da humildade! Coragem! Deus nos há de ajudar e ainda faremos alguma coisa de bem. Sobre a suavidade desta branda correção queria eu fundar solidamente a resolução de não mais reincidir no mesmo pecado, procurando os meios conducentes a esse fim e principalmente o conselho do meu diretor.
Se entretanto o coração não for bastante sensível a estas doces repreensões, convém empregar meios mais enérgicos, uma repreensão mais forte e áspera para enche-lo de uma profunda confusão de si mesmo contanto que, depois de tratá-lo com esta severidade, procure-se consolá-lo com uma santa e suave confiança em Deus, à imitação desse grande penitente que, sentindo sua alma aflita, a consolava dizendo: Porque estás tu triste, minha alma? E por que me perturbas? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: salvação de meu rosto e Deus meu!
Levanta-te de tuas faltas com uma grande placidez de coração, humilhando-te profundamente diante de Deus e confessando-lhe a tua miséria, mas sem te admirares disso. Que há, pois, de extraordinário que a enfermidade seja enferma, a fraqueza, fraca, e a miséria, miserável? Detesta, contudo, com todas as forças, a afronta feita à Divina Majestade, e depois, com uma confiança inteira e animosa em sua misericórdia, volta ao caminho da virtude, que tinha abandonado.
Capitulo 9- Filoteia- São Francisco de Sales
Por Angela Barroso
Fonte: https://www.comshalom.org/sao-francisco-de-sales-e-mansidao-para-conosco/