“Voltai para mim com todo o coração”, diz o Senhor

Desde o século IV, os cristãos adotaram o costume de preparar a festa anual da Páscoa com uma quaresma (Quadragesima), isto é, com quarenta dias de penitência, que imitam os quarenta dias de jejum que Cristo observou antes de iniciar sua vida pública. Por isso, desde sua origem, esse tempo vem caracterizado, essencialmente por um forte convite à penitência evangélica, uma penitência interior e exterior, individual e social, pessoal e comunitária. É dentro deste espírito que se criou, no Brasil, a Campanha da Fraternidade. Este ano a Campanha é ecumênica e o tema é ecológico: “Casa comum, nossa responsabilidade”. Já o lema é: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Am 5, 24) ”.

Neste sentido, segundo Karl Rahner, precisamos, hoje de uma “revolução copernicana” na piedade moderna, isto é, perceber e experimentar que “o dia-a-dia de nossa vida está repleto de Deus e de sua graça”. A partir do Vaticano II o centro da vida cristã – o que vale dizer da vida de Cristo vivida num e por um cristão – se deslocou do templo, da igreja e da própria religião para as realidades humanas e sua história. Isso significa que hoje, não se pode mais ser cristão sem converter-se também para os irmãos e irmãs e todas as criaturas de nossa Casa comum, principalmente as mais injustiçadas, debilitadas e sofredoras.

Quem compreendeu bem a importância da penitência evangélica e da Quaresma foi São Francisco. Chegou a definir a vida cristã como “vida de penitência” (Testamento) e o grupo de irmãos reunidos ao seu redor de “penitentes”: os “Penitentes de Assis”. Estimava tanto essa penitência que chegava a fazer cinco quaresmas por ano. Foi numa dessas – a de São Miguel – que teve a graça de receber no próprio corpo os sagrados estigmas do seu Senhor.

 

  1. Voltai para mim com todo o coração

O caráter penitencial da vida não foi uma invenção de Jesus. Os judeus já conheciam os dias de jejum e penitência, principalmente em tempos de calamidades e decadências religiosas. Muitos eram os sinais desse espírito e dessa busca: rasgar as vestes, vestir-se de sacos, cobrir-se de cinzas e entoar lamentações nacionais. Os profetas, porém, insistiam para que todos esses gestos viessem da interioridade sincera de um coração contrito e humilde: “Rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos” (Joel 2, 13a). Neste sentido, quem se volta inteiramente para Deus como o seu único e verdadeiro Senhor, não precisa de mais nada e de mais ninguém. Sua conversão virá acompanhada também da necessidade de um despojamento radical.

O Novo Testamento expressou o retorno para Deus com o clássico verbo “metanoein”, que tem o sentido de mudar de mente (nous)[1], de revolucionar o próprio pensamento, de adotar outro modo de pensar e de sentir. A virada se dá, aqui, no interior do homem. A tradição tem vários modos de chamar este interior invisível, âmago velado: ápice de sua mente (Boaventura), fundo da alma (Eckhart), coração (Bíblia/Pascal). Quer dizer que aquilo que o homem tem de mais nobre em seu ser sofre uma guinada para Deus e, com isso, todo o seu ser, sua inteira existência, vira de volta para Deus. Daí a insistência de Jesus: “convertei-vos e crede no Evangelho”. Em Jesus, porém, a conversão está sob a égide não da severidade e da ameaça da Lei, mas da alegria do Evangelho, isto é, da presença do próprio Deus: o Deus-conosco. Por isso o arrependimento e a conversão, em Jesus, mais do que uma questão de remorso e de temor servil (attritio)[2] é uma questão de um pesar amoroso e de uma veneração filial (contritio)[3]. O cristão não ama a Deus porque o teme, mas se o teme é porque O ama (S. Francisco de Sales).

  1. Eis o tempo favorável

A Quaresma, porém, antes de um tempo de quarenta dias é um sinal de que toda a vida deve ser vivida em espírito de penitência evangélica. É por isso que São Paulo convida os cristãos: «Reconciliai-vos com Deus. Este é o tempo favorável». Para Paulo, a penitência, a conversão, o retorno do homem para Deus, é um renascimento. É morrer com Cristo, para ressuscitar com Ele, e, assim, tornar-se uma “nova criatura”: “se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. O mundo antigo passou, eis que aí está uma nova realidade” (2 Cor 5, 17), diz ele no mesmo contexto da segunda leitura de hoje.

  1. O Pai que vê o que está oculto será tua recompensa

Como para os antigos profetas, também para Jesus o centro da penitência é o esforço de abrir-se para o Senhor que vem ao nosso encontro no outro que está ao nosso lado para que nós lhe lavemos os pés. Por isso em seu famoso Sermão da Montanha não diz que o homem deve praticar a esmola, a oração e o jejum – obras que todo homem deve fazer por ser homem -, mas como deve fazê-lo, isto é, de modo limpo, humilde, isento de qualquer outra intenção senão o puro bem-querer, sem nenhum “porquê”, nem “para quê”. Qualquer outra busca que não seja abrir-se para o Pai “que vê no segredo”, vem do mal da vanglória.

Por isso, Nosso Senhor, com as indicações da perícope evangélica de hoje, quer matar este mal pela raiz – eliminando-o no seu nascedouro: no desejo de aparecer e de parecer bom, de parecer justo, aos olhos dos outros e de si mesmo – o que Jesus chama de “hipocrisia”. Hipócrita é aquele que simula, que finge: que quer aparecer e parecer como aquilo que ele, no fundo e na verdade, não é. O contrário da hipocrisia e da vanglória é a humildade: quando o homem aparece na verdade daquilo que ele é diante de Deus.

Assim, a Quaresma é um tempo, uma caminhada que nos leva a reconhecer e a aprender uma lição que devemos seguir todos os dias, em tudo e com todos: que todo o bem e todo o carisma provém de Deus e que, por conseguinte, de tudo o que temos ou somos de nada podemos gloriar-nos. Por isso, tornou-se praxe na abertura da Quaresma recordar ao cristão os três grandes exercícios penitenciais da tradição cristã: a esmola, o jejum e a oração.

A oração porque nos leva a libertar-nos de nós mesmos e a abrir-nos para Deus. O jejum porque nos liberta da busca da autossatisfação piedosa e nos coloca no seguimento de Cristo pobre e crucificado; um seguimento no qual o mais importante não é a aceitação do sofrimento que nós mesmos nos impomos, mas que vem gratuitamente dos outros ou dos acontecimentos da vida. O mesmo diga-se da esmola que deve ser feita gratuitamente ao ponto de a mão esquerda não saber o que faz a direita.

Há em cada um desses três exercícios um único e mesmo espírito: o despojamento do centralismo do eu da própria subjetividade. Assim, aos poucos o fiel não dirá mais ”eu sei”, mas o Senhor sabe, “eu faço”, mas o Senhor faz, “eu quero”, mas o Senhor quer, “eu posso”, mas o Senhor pode.

Conclusão

A exemplo de Jesus e Francisco que se retiravam do público para estarem bem próximos da fonte que é o Pai e assim poderem estar também bem unidos e próximos dos homens e das criaturas acolhamos mais esta Quaresma com muita gratidão e alegria.

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini.

 

[1] A palavra “nous” vem da raiz “snu”, que tem a ver com farejar. Quer dizer: ter o sentido dirigido a. “Nous” significa, assim, a percepção espiritual, a apreensão intelectual do sentido de ser, o pensamento, portanto. Os medievais traduzem ora por “mens” (mente), ora por “intellectus”. É a disposição receptiva à manifestação do ser, à verdade. “Nous” diz, também, “insight”, vislumbre das possibilidades de ser, inventividade, portanto. Também tem a ver com a consciência (syneidesis), isto é, com o saber de si por parte do homem no tocante à sua orientação total na vida. Pode ser, portanto, teorético ou prático. É o mais elevado no homem, o mais nobre, o divino no homem. Equivale ao que a Bíblia chama de “kardía” (coração): o centro pessoal do homem, para onde converge todo o seu viver, e de onde emana todos os seus pensamentos, suas palavras e ações.

[2] Arrependimento imperfeito.

[3] Arrependimento perfeito.